Te informo: tenho útero, mas faço parte dessa “irmandade”.
Sinto o preto dos teus olhos
acompanhando meus movimentos todos.
É hora do almoço: devoro-te.
Teus olhos seguem, atentos,
a minha entrega e o meu refazer.
Acompanham-me quando, calmamente,
ponho de volta o meu vestido preto.
Cubro as marcas do que fizemos,
com um preto que nem brilha
e nem brinca com transparências.
Austero.
Refaço-me.
Levo comigo, discretamente,
aqueles cheiros todos
que nas poucas horas
estabelecidas para o repouso de quem trabalha,
nós misturamos em alquimia e a exaustão.
Permanecem só o preto e os odores.
Refaço-me.
Da avassaladora, nada mais existe;
volto à invisibilidade que me cai tão bem.
Há um sinal: um leve decote,
para que teus olhos pretos, cúmplices,
relembrem as fantasia e os segredos de nós,
que guardo displicente e silenciosa.
Sou fantasia.
Entendes?
Em dias de ventania, mostro-me mais.
O vento nordeste adora os meus joelhos.
Os nós dos meus joelhos revelam desejos quentes
E trazem lembranças inconfessáveis,
de almoços memoráveis, celebrações de vida,
encontro entre amigos
dos quais estive inexplicavelmente ausente,
porque te devorava
– uma outra forma de celebrar a vida.
Rita Mendonça, é maceioense , um talento pulsante !!!
O ENCANTADOR DE SERPENTESRita Mendonça..
Eu já sonhava com a textura do teu toque,
quando o palco ainda era tua morada.
Eu já imaginava o calor de tuas mãos,
desde a primeira vez
em que te vi acariciar a pele das congas,
ordenando tuas vontades em gestos,
e elas, alucinadas, te obedecendo em ritmos.
Eu recriei em ondas cerebrais o teu grito rouco e forte,
quando meus ouvidos só conheciam
as primeiras nuances de tua voz cantarolando em falsete,
dando ritmo as mulheres que te adornavam o solo.
E já sabia que um dia tu descerias do tablado,
e buscar-me-ia com os olhos em meio ao público.
E quando me achasses, sorririas,
e com calma entrarias em minha vida,
como se há muito ela já fosse tua.
De antemão, eu sabia que me olharias nos olhos,
e me afagarias as mãos.
E que me dirias coisas profanas ao ouvido.
Segredos nossos, do que ainda teríamos a sobreviver,
mas que eu já colecionava e, por isso, não me assustavam.
Disso tudo eu sabia,
porque antes do fim do show de tua vida,
antes de desceres do palco
eu já havia pedido licença ao meu sagrado
e tratara de exercer minha arte, o meu ofício,
para restituir-lhe o feitiço em gênero e em número,
mas em grau mais intenso.
Para ter-te meu, como me tinhas,
Tive que te fazer cativo do meu enredo.
Teci-lhe uma longa e emaranhada história,
cheia de nós e pontos reversos,
na qual eu trançara, cuidadosa e antecipadamente,
o roteiro que eu queria que tivesse a nossa sobrevida.
Pedi licença ao teu profano
e estreei no teu palco a minha fábula,
cheia de heróis, príncipes,
capas, espadas e dragões vencidos.
Nela, não haveria piedade para os maus.
Também não haveria donzelas,
até para que não houvesse necessidade de dublês
e com isso inchasse o orçamento
– já que dinheiro é sempre problema nos relacionamentos.
No palco, só eu e você.
E o final era de múltipla escolha,
qualquer deles, venturoso.
É que tínhamos nos pulsos
como garantia de vida, a marca dos afortunados.
O sinal profundo, feito a ferro e fogo
pouco depois do nascimento,
e que nos identificaria quando, enfim, nos defrontássemos.
Por ele, perdíamos o medo,
pois sabíamos que juntos,
separados pela vida ou por outros amores.
Em qualquer dos finais, seríamos “felizes para sempre”.
Dydha Lyra disse: "Rita Mendonça, é advogada atuante em Inclusão Social , e dotada de sensibilidade aguçada na arte da poesia! "
Pedaços de Sonho Édson Bezerra
O dia lhe acordou suspenso
E no sonho havia um pedaço de luz
Solto no mundo.
E então, ele
Fez um buraco na noite e
Vazou do sonho e
E enveredou a colorir o mundo.
De azul ele pintou as portas
E de verde as janelas das casas tristes
Os telhados, luz da cor do sol
E nas ruas,
Antes de estender um tapete de flores
Estampou uma nesga de vento sob a luz do Sol.
O mar
Deixou como estava
E convocando crianças e velhos
Se fez pai dos órfãos
Acalmou os loucos
E completando as palavras
Das estórias tristes
Aqueceu contos e silenciosamente
Espalhou sonhos debaixo das portas.
E depois de estar muito cansado
E da certeza ter da sala farta em vinhos,
Descosturou os rombos da noite, voltou ao sonho
E se prostou a dormir, quase anjo.
Pois era assim
Que deveria estar o mundo
Quando a amada ao escutar
O silêncio dos lobos
Acordasse da noite
E resolvesse conhecer a terra de seu corpo.
Tambores que me fazem percorrer ruas bêbadas
Um enebriado eu na rua entre tantas felicidades efêmeras como todas são,
A verdade travestida em fantasia dança
Se todo mundo é rei, rei não há,
Dias em que homens e mulheres são rainhas loucas
Um recital de trompetes e gargalhadas...
Carnaval é revolução que passa...e volta!
Dydha Lyra disse: "Yonaré Flávio, é poeta e funcionário público."
Palestra no Rotary Club de Maceió, em 02 de agosto de 1951
Minhas senhoras,
Senhor Acadêmico Arnon de Melo, Meus senhores!
Corria o ano de 1040da nossa Era quando em Naishapur, no Khorassan, o lar de Ibrahim al-Kháyyám, o fabricante de tendas, foi enriquecido com a chegada de um filho que tomou o nome de Ghiáthuddin Abulfath Omar, e que iria viver fisicamente 83 anos.Entregue, logo nos primeiros anos, aos cuidados de Iman Mowaffak, um dos maiores sábios da sua terra natal, o jovem aproveitou enormemente os ensinamentos do Mestre que lhe deram.Absorveu depois, já sozinho, praticamente todo o saber daquela época, aprofundando-se muito especialmente, em Matemática e Astronomia, tendo chegado a merecer a classificação de sumidade mundial nessas duas ciências. Escreveu uma Álgebra modelar, da qual existe uma tradução em francês; fez uma revisão nas tábuas astronômicas, e lembrou ao sultão Malik-Shah uma alteração no calendário.Nos intervalos do seu trabalho no Observatório Astronômico de Merv, reunia alguns amigos escolhidos, servia-lhes ótimo vinho, do qual nunca usava em excesso, e parece que naquele meio-êxtase, naquele meio-desligamento que o sangue da parreira proporciona entre antes de ser tomado e o ponto onde provoca a embriaguez, improvisava quartetos ou rubáiyát, plural persa de rubai, com três rimas e um verso solto.Sete séculos se passaram sem que o Ocidente tivesse conhecimento da obra poético do astrônomo e matemático, hoje superado, mas dificilmente superável Poeta, numa demonstração de que a Arte, principalmente pela sua cúpula, a Poesia, imortaliza muito mais do que a Ciência, pois o progresso desta última exige um contínuo avanço diferenciador, e a essência imutável de Beleza da outra é imune às variações, no Tempo, para mais ou para menos, para melhor ou para pior. Em 1859 aparece, na Inglaterra, um modesto folheto de um gentil homem do campo, Eduardo Fitzgerald. Dois grandes poetas Swinburn e Rossetti, fazem, um ano depois, a descoberta da brilhante tradução, ou, melhor, interpretação, sobre Omar. Mas, apesar das opiniões dos dois ilustres vates citados, somente oito anos depois é que aparece uma segunda edição.Esta, porém, teve como resultado o começo real da divulgação ocidental do que produzira o Poeta-Astrônomo. E hoje, segunda famosa instituição mundial de estatística, é Kháyyám o poeta mais lido do mundo, e o é em praticamente todas as línguas. Estou informado de que em nosso país existem cerca de dez traduções e interpretações dos famosos rubáiyát.Somente seis desta me foi dado até hoje obter e estudar: Jamil Almansur Haddad, Emílio de Adour, Matos Pereira, Araújo Filho, A.A. Capper e Octávio Tarquínio de Souza; os quatro primeiros em versos, e os dois últimos em prosa. Antes de vos citar alguns trechos sobre o amor, das interpretações desses brasileiros, quero mencionar uma observação de vários daqueles que estimam a obra do inspirado Poeta-Cientista, e com a qual concordo inteiramente: há algo no que ele diz, ou talvez no modo de dizê-lo, ou ainda no que faz subentender, trazendo a convicção de que o imediatismo, o amor ao vinho e a paixão excessiva pelas mulheres, predominante na superfície dos seus escritos, escondem, apesar das aparências em contrário, não um descrente, um ébrio e um devasso, mas justamente o contrário, pois ele, artista consumado, sabia o atrativo imenso dessas fraquezas humanas, e, acima delas, as usava para exercita os seus poderes de expressão artística. Passo a citar agora, para vossa apreciação, alguns trechos de amor do grande Persa, como os interpretou o ilustre cearense Matos Pereira:
“VIII
Aqui, com alvo pão, sob esta fronde,
com vinho e versos – e contigo amor,
ao meu lado cantando, cantando no deserto –
mesmo o deserto é um paraíso em flor!
IX
Com água e pão sob esta verde fronde,
e vendo o amor que em teu olhar existe:
nenhum sultão é mais feliz do que eu –
mendigo algum, também, não é mais triste!
XVIII
Debruça-te, de leve, sobre a relva
na margem deste rio; ela é rebento
dos lábios que com beijos nós selamos,
e que a morte selou no esquecimento
CII
Ah, como é vil o peito que não sente,
e o coração que não conhece o amor!
Se não amas - o Céu não tem beleza...
Se não amas – o Sol não tem calor...
CXVIII
Deus, Tu fizeste o céu cheio de estrelas
Mas Te excedeste ao modelar a Dor – Com lábios de rubis, cabelos de ouro...
Quantas criaste, ó quantas, meu Senhor!
CXL
As aparências quase sempre enganam:
os beijos são frutinhas saborosas,
mas atenção: - Allah, nos deu o Amor,
como fez certas plantas venenosas...
CLXV
Deus tira a força, da fraqueza humana,
E nós juramos, com o mesmo ardor,
o Verdadeiro e o Falso porém eu –
tenho a desculpa da embriaguez do Amor.”
Ouçamos um pouco de A.A. Capper, que traduziu Toussaint-Omar:
“IX
Outrora, este vaso era um pobre amante que gemia diante da indiferença de uma mulher. A asa, no gargalo, é o braço que envolve o pescoço da bem amada!
X
Como é vil o coração que não sabe amar, que não pode embriagar-se de amor! Se não amas, como poderás apreciar a deslumbrante claridade do sol e a doce luz do luar?
XVI
Já não há mais nada que me interesse. Levanta-te e serve-me um pouco de vinho! Esta noite, tua boca é a mais linda rosa do Universo...Vinho! Vinho vermelho como tuas faces! E que meu remorso sejam leves como os cachos de teu cabelo!
LIV
Um jardim, uma jovem de formas ondulantes, uma urna de vinho, meu desejo e minhas amarguras: eis o Paraíso e o Inferno, para mim.Mas, quem já teria percorrido o Céu e o Inferno?
CXIX
O amor que não consome, não é um amor verdadeiro. Uma brasa poderá produzir o calor de uma fogueira? Noite e dia, durante toda sua vida, o verdadeiro amante é consumido pela dor e pela alegria...
CXLIV
Um pouco mais de vinho, minha bem amada! Tuas faces não tem ainda o esplendor das rosas. Um pouco mais de tristeza, Kháyyám: tua bem amada vai sorrir-te!
CLXVII
Recebi o golpe que esperava: minha bem amada abandonou-me. Quando eu a possuía, era fácil desprezar o amor e exaltar todas as renúncias. Junto de tua amada, Kháyyám, como vivias só! Vê tu: ela partiu para que pudesses refugiar-te nela...”
Eis, o que nos diz, em alguns trechos de amor, o paulista Haddad, que traduziu Kháyyám-Fitzgerald:
“XIII
Um pedaço de pão sobre a relva ensombrada,
Um livro de poesia, a urna de vinho e a amada
No deserto a cantar, sonorosa, a meu lado...
Muda-se a solidão num Éden encantado!
XXV
Vamos gozar o amor! Provar cada alegria
Que a vida possa dar! Seremos poeira um dia!
Poeira a jazer na poeira e sob a poeira e assim
Sem vinho e sem amor, sem música e sem final!
XXXVII
A taça que falou com voz tão fugidia
Quem sabe se foi viva e já bebeu um dia?
O lábio que eu beijei, argiloso e passivo,
Quantos beijos trocou no tempo em que era vivo!
XCVII
Pudéssemos enfim conspirar, bem querida,
Para que o esquema hostil das cousas desta vida
Se fragmentasse para o plasmarmos então
Conforme desejasse o nosso coração.”
Octávio Tarquínio de Souza, na sua interpretação em prosa levíssima, quase gasosa, assim se expressa:
25
Como é vil o coração que, incapaz de amar, não pode conhecer o delírio da paixão!... Se não amas, és indigno do sol que te ilumina, da lua que te consola.
29
Deixemo-nos de palavras vãs.Levanta-te e dá-me um pouco de vinho. Esta noite tua boca é a mais bela rosa do mundo e basta para todos os meus desejos. Dá-me vinho. Que ele seja corado como as tuas faces, e o meu remorso será ligeiro como as tuas tranças.
65
Se enxertaste no teu coração a rosa do Amor, tua vida não foi inútil, quer tenhas buscado ouvir a voz de Deus, quer tenhas sorridente empunhado a taça do prazer.
66
Um jardim, uma rapariga ondulosa, uma ânfora de vinho, o meu desejo e a minha amargura: eis o meu Paraíso e o meu Inferno!...Quem sabe , porém,o que é o Céu, que é o Inferno!?
82
Estou velho, e a paixão que me inspiraste, arrastar-me-á ao túmulo, pois não cesso de encher de vinho a grande urna. Minha paixão por ti tem razão contra mim mesmo...E o tempo desfolha a minha bela rosa...
84
Um pouco de pão, um pouco de água fresca, a sombra de uma árvore e os teus olhos! Nenhum sultão é mais feliz que eu... Nenhum mendigo é mais triste...
98
Delicia-te, ó meu irmão, com todos os perfumes, todas as cores, todas as músicas. Envolve de carícias, todas as mulheres. Lembra-te de que a vida é fugaz e que breve voltarás ao pó.
125
O amor que não devasta, não é amor. Um tição espalha acaso o mesmo calor que uma fogueira? Noite e dia, durante a vida inteira, o verdadeiro amante se consome na dor e no prazer.
164
Recebi o golpe que esperava.Abandonou-me a bem amada. Quando eu a possuía, era-me tão fácil desprezar o amor e exaltar todas as renúncias!...Junto de tua amada, Kháyyám, como estavas só! Sabes? Ela se foi para que tu possas refugiar-te nela...”
Emílio de Adour, também se baseando em Fitzgerald-Kháyyám, assim se exprime:
“11
Um livro e versos, sob frondosa rama,
Bom vinho, um pão, e tu ao lado meu,
Num ermo a sós, tu para mim cantando...
Ermo bendito, és paraíso, és céu!
35
Penso que o vaso que, assim, respondia,
Viveu e riu outrora, em nossa esfera,
E o lábio frio seu que, ora, eu beijava,
Quiçá que beijos recebeu – e dera!
Araújo Filho, de Pernambuco, (poeta cuja lida com a matemática da contabilidade de que vive em nada interfere com sua atuação no setor tão pouco prático das Musas) em seu belo livro “Sugestões de um Poeta persa”, assim reflete o amor no grande Omar:
“II
Todo amor que não devasta,
Não é paixão verdadeira:
- Uma brasa espalha acaso a mesma chama
E o calor de uma fogueira?...
O coração de quem ama,
(Afirmam sábios no amor)
Só é feliz quando, a vibrar, se gasta
Ou no prazer, ou na dor.
IV
Vives só das aparências!
Vives porisso, enganado!
Da vida nada sabes, e, ignorante
Mais te apegas as falsas refulgências
Deste sonho celebrado
Por todos, a todo instante:
O eterno e infinito amor.
Lembra-te, entanto, em tuas horas mais ditosas,
Que o Amor,
Gêmeo da Dor,
Deus, ao fazê-lo,
Fê-lo
Como fez certas plantas venenosas.
XI
È muito pouco o que ambiciono,
O que meu coração pede
Outro anseio maior não me consome:
(Ai deixa que assim te diga,
De alma aberta, sem refolhos.)
- Uma côdea de pão para matar a fome,
Um pouco de água para minha sede,
De uma árvore copada a sombra amiga
Para meu sono.
E para encanto dos meus olhos, os teus olhos,
Ó minha amiga.
Nada mais, ó minha amiga.
Não sei se no mundo existe,
Como eu, mendigo tão triste,
Mas, se um dia vier a ter tudo isto meu,
Não haverá Sultão mais ditoso do que eu!
XIX
A voz do Muezzin, em sua prece,
Não tem mais sentimento e mais calor
Do que a voz, com que esta alma te reclama,
Ansiosamente, o seu Amor!
Tu és vinho que embriaga e inflama
Meu coração de sonhador!
- Um coração que refloresce,
Por milagre do amor!
Se assim vivo e me engano, sei, contudo,
Que esta ilusão apetecida,
Que me anda em volta, há de passar, que tudo passa....
Ninguém se iluda, como não me iludo:
Teu vinho, Amor, amarga sempre ao fim da taça...
Tem o gosto da vida...
Tem o gosto do Amor.”
Completarei agora as minhas citações com trabalho de alguém que eu talvez conheça melhor do que os seis antecessores, por esta razão: vejo-o diariamente
no espelho. Explico-me melhor: há vários anos atrás, passando em Recife, vi, numa livraria, um pequeno volume denominado “Folhas de Chá”, título que me chamou a atenção. Adquiri o livro, de autoria de um baiano, Oldegar Vieira. Eram tercetos à moda japonesa, ou haicais, poemetos de um título e dezessete sílabas. Muita poesia neles encontrei, mas notei que,para meu gosto, lhes faltava algo: uma musicalidade mais completa que desaparecera pela ausência da rima e pela oscilação talvez um pouco arbitrária do ritmo.Continuo a crer em Paul Claudel quando ele diz: “A música combinada com uma idéia atraente é poesia; a música sem a idéia é simplesmente música; e a idéia sem a música é prosa”. Para mim, entre muitas outras qualidades, todas dificilmente definíveis, mas que podem ser sentidas e quase percebidas, tem a Poesia a de ser uma ondulante sonoridade interna que, quando a pressão da intensidade lhe força o transbordamento do reservatório já insuficiente das profundezas em que se gerou; quando procura o seu segundo nascimento, a sua passagem do mundo pessoal do poeta para o mundo geral do público, prefere, para seu novo habitat, complementar, perceptível e comunicante, uma exteriorização também sonora, e que assim tente reproduzir e continuar, tão fielmente quanto lhe for possível, os arpejos interiores numa vibração simpática que aumente e intensifique a apreensibilidade da eloqüente presença que é uma mensagem de beleza. Discordo, respeitosamente discordo dos que separam do conceito de Arte o poder tonificante do Belo, força vital cuja ação se faz tão necessária em um mundo como o de nossos dias, feio de problemas e crises de todas as ordens, e dificilmente solúveis, e que vive namorando a Morte num suicídio que seria uma nova guerra, na qual os consideráveis progressos da Ciência se concentraria em matar. E ao que me parece, a Beleza essencial, por não se diminuir em trajes impróprios, se sente mais a cômodo, mais em casa, na sua conseqüência lógica, na beleza formal; e,assim, se vê muito aumentada a expressividade do conjunto. Perde, deste modo, o apuro da forma, qualquer sentido de restrição ao talento artístico, tornando-se, antes, uma demonstração do maior valor desta pela sua comunhão na beleza mais próxima do total.
A objetividade de um exterior sonoro não impede, e, pelo contrário, estimula a penetração, a faculdade de sentir e de compreender pelo leito, mesmo do subjetivismo que tão poético se encontra nos artistas mais arrojados e completos. Da mesma forma que um belo corpo não é um estorvo à existência de uma alma também bela, a musicalidade corporal da rima e do ritmo não proíbe, de modo algum, a coexistência da intensidade anímica que é a essência de imagens e idéias. Ninguém negará que um corpo feio possa abrigar uma alma que contrasta com o mesmo, mas, por via de regra, o contraste, em Arte, devido talvez à sua dissonância tão difícil de se aplicar de modo positivo,, rouba sempre um pouco, e, as vezes, muito, daquela indefinível harmonia interior que os poetas tentam exprimir, e que é,ao meu ver, um dos mais atrativos e valiosos atributos do grande Encantamento Impreciso (que me seja perdoado este quase pleonasmo).
A beleza essencial de um poema, quando ela é real e suficientemente viva, traz, qual irmã gêmea, a beleza formal, com quem entra em uma espécie singularmente encantadora de sintonia sinérgica.
Voltando à minha explicação: anos depois, em fins de 1948, um amigo em Lage me empresta um livro de Guilherme de Almeida que eu não conhecia nem possuía ainda, “Poesia Vária”, e nele encontrei algumas dezenas de tercetos à moda Japonesa dentro do esquema de rimas criado pelo autor: duas redondilhas menores, ou verso de cinco sílabas, rimando entre si, e separadas por uma redondilha maior, ou verso de sete sílabas, na qual a segunda rima com a última. Fiz os meus estudos sobre o ritmo, e, tendo concordado plenamente com o esquema rimático do grande Guilherme, ensaiei o gênero. Os resultados não foram desanimadores.
Dias depois, relendo o Poeta-Astrônomo, me veio a lembrança de tentar uma experiência de sinergia levantina de essência e forma, aumentando a orientalidade do conjunto pela embalagem do perfume persa de Kháyyám nos jarros do Japão, como denomino os haikais.
Mauro Mota, o grande animador da literatura nordestina, quis publicá-los no Suplemento Literário do “Diário de Pernambuco”, onde já saíram quase duzentos poemetos, desses que tomei a liberdade de crismar de Kháyyam-Lyras.
Vou citar agora algumas traves, as que são tintas de amor, desta minha ponte sobre os oitocentos e poucos anos, elemento de pouca significação nos domínios da Poesia, e que nos separa cronologicamente do imortal Poeta Omar. Chamo a vossa atenção para a síntese e a sugestão das quais creio ter conseguido dotar estes poemetos. Devem dizer muito e lembrar mais ainda.
Comparando dois tipos de embriaguez:
Perigosa embriaguez.
Bêbado de amor,
Procedo sem tino... e o medo
foge, atiçador!
Aconselhando à Rosa cuidado quanto a tóxicos:
Doce Veneno
Tem, Rosa, cuidado,
Que o rouxinol te instilou
Seu canto inspirador!
Sobre um certo plantio muito interior:
Utilidade
Se em teu coração
foi flor a rosa do amor,
não viveste em vão!
Interpretando um dos mais famosos rubáiyát, e excluindo dele a menção da necessidade de sombras, porque o deserto não é somente o que se compõe de areias desabitadas, mas também a falta de compreensão por parte dos semelhantes:
Paraíso
Pão, versos e vinho...
Tu perto...E o próprio deserto
é um céu de carinho!
Declarando uma das mais importantes metas a atingir, e o premio da vitória:
Honra ao Mérito
Se o coração te arde
De amor avassalador,
Não és um covarde!
Fazendo uma comparação meteorológica:
Mulher-ventania
Atroz viração!
te agrada, despetalada,
a flor da razão!
Confessando sinceramente uma fraqueza:
Insaciabilidade
Alegre doidejo
na sede que aumenta, crede,
co’o vinho de um beijo!...
Externando um incurável afeto ao que nos faz mal:
Um veneno querido
O amor desilude,
nos faz infelizes,mas...
ninguém quer que mude!
Numa comparação de História Natural:
Irmãs em dois reinos
Com perfume e espinhos
nos dosa a mulher, que é a rosa,
rancor e carinhos!
Sobre memórias de jardinagem:
Flores irmãs
A boca cheirosa
da amada tanto me agrada
que me lembra a rosa!...
Voltando à embriaguez de certo tipo:
Bêbado de amor
Se estranho me vês,
querida, foste a bebida
que assim me refez...
Mandando que não se passe na vida inúltimente :
Amor e Morte
Abandona este ar de
quem não crê numa ilusão:
ama, ou será tarde...
Novamente a meteorologia:
Alívio
Orvalho, tristeza.
Mas teu olhar, que é sol, deu
um fim com presteza!
Citando uma lista indesejável:
Dos que não amam
Se estás neste rol,
tu não mereces, pavão
que te aqueça o sol!
Sobre aspectos mortais do móvel da Vida:
Coragem
E Deus fez o Amor
que é planta e veneno, e encanta
quem não teme a Dor!
A respeito de alguém que quer tudo para si:
Monopólio
Não mais me pertenço,
Amor, que, açambarcador,
levaste meu senso!
Mais uma vez nos estimulantes:
Bebida alcoólica
Gostosa alegria
nos traz o licor que apraz,
do Amor, que inebria...
Opinando sobre o número provável de ocupantes do Céu:
Raízes indestrutíveis
Vinho e Amor, confio,
nos não condenem, que, então,
fica o Céu vazio...
Julgando a intensidade dos males:
O mal menor
Dor mais divertida
que amar, não podes achar
na trágica Vida!...
Dando um resumo biográfico antecipado do leitor:
Recapitulação
Se amaste, viveste...
tens vida inútil, torcida,
se tal esqueceste!
Lembrando um fel que sabe a mel:
Amarga doçura
Trazeis, meus amores,
na Vida, tão malsofrida,
saborosas dores!...
Receitando a doença mais comum da humanidade:
Remédio para a ignorância
Triste, e em vão, rastejo
a mola do Ser, consola
teu sábio co’um beijo!
Lembrando uma namorada que fez, antes do poeta, a grande viagem inevitável:
Sugestiva Saudade
Lábios que eu beijei
outrora são poeira, agora,
que em breve serei!...
Regressando a dois motivos e à semelhança de perturbações que originam:
Embriagadora
Teu doce carinho
me faz tão bêbado e audaz
quanto um grande vinho...
Esclarecendo um eficiente recurso técnico:
Estratégia amorosa
Ante o teu olhar,
Me apraz e convém ter mais
Tristeza a mostrar...
Declarando quando o sofrimento desaparece:
Sensação de alívio
Amada, és sublime!
Se a mim te achegas , tem fim
Tudo o que me oprime!...
Externando uma gratidão:
Reconhecimento
Amada, inebrias
meu ser, que sabes encher
de mil alegrias!
Sobre a ação lenta e progressiva de uma morte alegre:
Intoxicação progressiva
Começa pequeno,
Mas cresce e nos enlouquece,
O Amor, bom veneno...
Acerca de um perigo digno de estima:
O risco da paixão
Nos lábios consigo,
Da amada, taça adorada,
Gostar de um perigo!...
Em torno de um certo resultado terrivelmente delicioso:
Conseqüência
A minha paixão
Por ti, voraz frenesi,
Venceu-me a razão...
Sobre um sangue de parreira cheio de estranha luz:
O vinho luminoso
Se da Vida, a regra
procuro, em tão denso escuro
teu beijo me alegra!
Mencionando uma vertigem das alturas de um tipo especial:
Atração do abismo
Bem ébrio me vejo
se atiças, e me enfeitiças,
a sede-desejo!
Numa comparação levemente pirotécnica:
Em vez de uma fogueira
O que não devasta,
tição sem crepitação,
frio amor... não basta!
Neste meu trabalho de interpretação de Kháyyám tive um grande estímulo, e não quero me furtar aqui ao prazer de prestar as minhas homenagens a quem m’o proporcionou: o Professor Samuel Mac Dowell Filho, da Faculdade de Direito do Recife, e uma das maiores culturas literárias do Norte do Brasil, teve a bondade de me dizer que, de todas as interpretações de Omar que ele conhece, em várias línguas, considera o meu trabalho a mais oriental de todas. A ele, aqui, perante este seleto público, o meu reconhecimento e a minha sincera gratidão.
Antes de encerrar esta palestra, na qual me vi forçado a infringir a restrição rotariana quanto a duração, quero citar alguns exemplos pessoais de apoio a minha convicção, que é igual a de muitas pessoas, de que para a produção mesmo do poema que inspira no leitor a certeza de que houve um motivo real de inspiração, este não precisa ter existência física ou emocional, sendo suprida a sua atuação por essa coluna-mestra do edifício da Poesia que se chama Imaginação.
Uma vida conjugal harmoniosa e a inexistência de quaisquer perturbadoras recordações femininas, não me impediram, nem a mim, um simples aprendiz da Poesia, de, imaginando uma mulher amada, distante no espaço e no tempo, escrever recentemente os seguintes exercícios elegíacos: